ACÃ E A MALDIÇÃO DO PECADO

ET-Tell,
identificada pela arqueologia bíblica como a antiga cidade de Ai. Crédito da
imagem http://www.biblearchaeology.org
Introdução
Nesta
lição, estudaremos o capítulo 7 do livro de Josué. Nos cinco capítulos
precedentes (1.5-5.15), analisamos a preparação e a entrada do povo em
Canaã. Já, dos capítulos seis a oito (6.1-8.35 [9]), o livro ocupa-se da
conquista da parte central de Canaã. O capítulo sete, portanto, trata de um
grave e incômodo estorvo à conquista de Canaã. O tema principal desta seção é: O
Pecado e Castigo de Acã.
Comparação
entre o capítulo 7 e 8 de Josué
Os
capítulos sete e oito formam uma unidade. O capítulo 8 está relacionado ao
sete, não apenas pelo uso do advérbio “então” (ARC), mas pelo paralelismo de
eventos e ideias que contrastam com o capítulo sete. Vejamos.
1.
No capítulo 7 os israelitas fracassam em função do pecado de Acã: A cidade de
Ai triunfa.
No
capítulo 8 os judeus triunfam em função da eliminação do pecado: A cidade de Ai
é destruída.
2.
O capítulo 7 trata das causas do fracasso na conquista.
O
capítulo 8 da restauração do ciclo de vitórias do povo.
3.
No capítulo 7 o pecado é banido.
No
capítulo 8 segue-se à confirmação do mal extirpado.
4.
No capítulo 7 a comunidade sofre.
No
capítulo 8 a comunidade regozija.
Notas
Expositivas da Leitura Bíblica
Josué
7.1,5-7, 11,12.
1-
E prevaricaram os filhos de Israel no anátema; porque Acã, filho de
Carmi, filho de Zabdi, filho de Zerá, da tribo de
Judá, tomou do anátema, e aira do Senhor se acendeu contra os filhos de
Israel.
a)
“Prevaricaram”. O número gramatical do verbo
“prevaricar”, expressa o conceito e senso comunitário das tribos de Israel.
Toda congregação tornou-se culpada pelo pecado de um só homem, Acã.
Em
nossa obra, A Família no Antigo Testamento: história e sociologia,
explicamos que o modelo social pelo qual as tribos de Israel viviam chama-se
solidariedade mecânica, conforme proposta pelo teórico social Durkheim.
Neste
tipo de solidariedade, os indivíduos possuem sua identidade e unidade tribal,
mediante a família, a religião, a tradição e costumes vividos pela totalidade
das tribos. Todos, igualmente, vivem os mesmos valores, seguindo a tradição
ancestral da qual a coletividade procede. Uma “família-tronco” perpetua-se em
torno do chefe de família pela instituição de um “herdeiro associado”.
Por
conseguinte, o fato de um pecado pessoal transtornar toda uma comunidade
deve-se, em grande parte, à estrutura deste tipo de sociedade. As famílias,
separadas por clãs patronímicos, mas unidas pela identidade coletiva,
normalmente, não agiam sozinhas, mas em grupo. A identidade de
um indivíduo confundia-se com o grupo a que pertencia.
O
povo de Israel, portanto, valorizava a integração e a
interdependência, entre as tribos e as pessoas, como valores quando um israelita pecava, todo o
povo assumia a responsabilidade pela transgressão cometida. Por isso, todo o
Israel foi castigado em consequência do pecado de Acã (vv. 11,12).
Israel,
a totalidade do povo, era um corpo composto por vários membros (cada uma das
tribos). O texto de Números 1.2, apresente adequadamente esse conceito: “Levantai
o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo as suas famílias,
segundo a casa de seus pais, contando todos os homens, nominalmente, cabeça por
cabeça” (ARA).
Essa
perícope apresenta: “congregação” (‘ēdâ) – todo o povo de Israel; “famílias” (mishpāchâ)
– o clã, como principal unidade social; e “casa” (bayît)
– a unidade consangüínea menor do que a tribo, onde vivem os indivíduos. [1]
Um
pecado praticado por um membro da “casa” (bayît) afetava a totalidade da ‘ēdâ (congregação). Os
versículos 13-19 têm como fundamento sociológico estas divisões: “santifica o
povo” (v.13); “vossas tribos” (v.14); “segundo as famílias” (v.14); “chegará
por casas” (v.14); “chegará homem por homem” (v.14). Imprescindíveis à unidade
do povo. De acordo com esses princípios, o pecado de um afeta a todos. Esse
mesmo princípio afeta também a igreja. Atente, por exemplo, aos textos paulinos
em 1 Co 5; 12; 14. Ou ainda Rm 5.12-21, onde encontramos as consequências da
transgressão de Adão e os efeitos da obediência de Cristo disseminados a toda
humanidade.
b)
“Anátema”. O termo já foi esclarecido na
lição. Trata-se do termo hebraico chērem, [2] literalmente, “maldição”. Esse vocábulo
procede de chāram, cujo significado básico é “consagrado”, ou “coisa
consagrada”.
De
acordo com a raiz, hrm (חרם), os
tradutores da Septuaginta (LXX) verteram o vocábulo para anathématos (αναθέματος),
traduzido em nossas Bíblias por “anátema”. Pesquisas, não muito
recentes, afirmam que o “anátema”, como o conhecemos por meio das Escrituras
Hebraicas, também era difundido em Mari e nas regiões da Mesopotâmia com o nome
deasakkum. Asakkun era como se denominava os bens de uma
divindade, de um rei, ou de um comandante militar. [3]
Um
caso significativo para entendermos o conceito de chērem,
está em Números 21.2,3, quando os israelitas prometem “destruir totalmente” as
cidades da região sul de Canaã [4]. Isto quer dizer que essas cidades seriam
“consagradas ao Senhor para destruição”, constituindo-se, portanto, em cidades
anátemas ou consagradas para a ruína.
Um
dos objetivos primários para que o exército de Israel assim procedesse,
encontra-se em Deuteronômio 13.12-17. Especificamente, o versículo 16 afirma: “E
ajuntarás todo o seu despojo no meio da sua praça e a cidade e todo o seu
despojo queimarás totalmente para o Senhor, teu Deus, e será montão perpétuo,
nunca mais se edificará”.
Desejava-se
com isto, evitar que o povo se corrompesse, espiritual e moralmente, com as
riquezas sacrificadas aos demônios-ídolos (Dt 32.16,17; Lv 17.7; 2 Cr 11.15).
Jericó estava, portanto, debaixo dessa lei. O versículo 17 confirma: “Também
nada se pegará à tua mão do anátema, para que o Senhor se aparte do ardor de
sua ira, e te faça misericórdia, e tenha piedade de ti, e te multiplique, como
jurou a teus pais”.
Ora,
a apódase [5] é condicional. Caso alguém dentre o povo desobedecesse a esta lei
irrevogável e inexorável, o oposto à promessa seria o juízo sobre o povo: inclemência e crueldade no lugar da misericórdia;
impiedade ou “desumanidade” no lugar de piedade; divisão e extermínio da raça
em vez de multiplicação da descendência.
Foi
justamente o antônimo desses léxicos beatíficos (misericórdia, piedade e
multiplicação) que se deu inicio na conquista de Ai. Os versículos 11 e 12 da
Leitura Bíblica confirmam essa assertiva: “Israel pecou, e até
transgrediram o meu concerto que lhes tinha ordenado, e até tomaram do anátema,
e também, furtaram, e também mentiram, e até debaixo da sua bagagem o puseram.
Pelo que os filhos de Israel não puderam subsistir perante os seus inimigos;
viraram as costas diante dos seus inimigos, porquanto estão amaldiçoados; não
serei mais convosco, se não desarraigardes o anátema do meio de vós.”
Este
castigo é a resposta da “ira de Deus” contra o pecado. Naquele fatídico dia, “os homens de
Ai feriram deles alguns seis, e seguiram-nos desde a porta
até Sebarim, e feriram-nos na descida; e o coração do povo se
derreteu e se tornou como água” (v.5 cf. v.13,15).
Somente
a expiação da culpa, isto é, a eliminação do pecador, interromperia o processo
iniciado em Ai (vv.24,25-8.1ss). A transgressão de Acã segue-se imediatamente à
identificação da linhagem do “perturbador” de Israel. Interessante é o fato de
os ascendentes de Acã possuírem nomes nobres: Carmi, “vinha” e, Zerá, “brilho
do sol”, enquanto o nome do personagem principal, Acã, quer dizer “perturbação”,
“perturbador”, “turbar”. No versículo 25 a aliteração [6] entre os
nomes Acã e Acor é digna de nota. Ambos procedem da mesma raiz e correspondem
em significado: “provocar calamidade” ou “perturbação”.
c)
“A ira do
Senhor”. Esta é uma expressão antropopática [7],
isto é, ao Senhor são atribuídos afetos ou sentimentos humanos.
Uma
outra forma de os hagiógrafos descreverem a ira de Deus é através do
antropomorfismo nariz ou narinas (Êx 15.8; Sl 18.8-16). Neste aspecto há uma
estreita relação entre o termo nariz e ira. Nariz, no hebraico, ’ap,
uma vez dilatado representa a ira, pois na mentalidade semítica, o furor, a ira
e a cólera se expressam por respiração mais veemente, ou exalação nasal mais
intensa. No versículo 26, a expressão “ardor da sua ira” é chārôn ’ap,
em sentido antropomórfico, “o
furor das suas narinas”.
Daí os autores usarem a figura do “nariz fumegante do Senhor”, para expressar à
ira divina.
A
ira do Senhor designa tanto a justiça de Deus que pune os homens maus, como
também ao seu descontentamento com aquilo que é malévolo ou injusto. A ira do
Senhor é contra o pecado, a fim de extirpá-lo da congregação santa. Assim
sendo, encerra o versículo 26: “Assim o Senhor se tornou do ardor da
sua ira; pelo que se chamou o nome daquele lugar o vale de Acor”, isto é, o
“vale da perturbação”. No profetismo tardio, “vale de Acor", tornar-se-ia
“lugar de esperança” (Os 2.14,15).
Lições
Práticas
Observe
o efeito deletério do pecado e a autoconfiança desprovida da bênção de Deus. A
cidade de Ai estava em menor número: “Não suba todo o povo; subam uns
dois mil ou três mil homens, a ferir Ai; não fatigueis ali todo povo, porque
são poucos os inimigos” (7.3). Consideravam-se vitoriosos pela
pequenez do exército de Ai, entretanto, foram derrotados e humilhados.
Neste
episódio, Josué ouve os espias e fracassa (7.2,3). Depois ouve a Deus e triunfa
(7.7-15). Por que não fez o inverso? Por que não consultou a Deus? Deste fato
podemos extrair sete preciosas lições para nossas vidas e também para nossos
alunos, quais sejam:
(1)
Uma poderosa vitória ontem, não garante uma pequena vitória amanhã;
(2)
Apesar de os fatos estarem a nosso favor, é melhor consultar e confiar em
Deus. Orar, mesmo por aquilo que parece óbvio, é uma demonstração de submissão
irrestrita ao Senhor.
(3)
É sempre melhor ouvir a Deus do que os homens, até mesmo quando os fatos e as
coisas estão evidentes. Como afirma o Salmo 118.8: "É melhor
confiar no Senhor do que confiar no homem".
(4)
Depender de Deus significa dar prioridade a Deus em tudo.
(5)
A santificação é indispensável à vitória. A santificação de ontem garante a
vitória de hoje. Todavia, para vencermos depois de amanhã é necessário
continuar o processo iniciado anteontem (7.13).
(6)
Muitos cristãos fracassam mesmo quando a batalha é pequena, mesmo quando o
inimigo, seja ele qual for, não se apresenta renhido, tudo isso porque prefere
confiar na própria força, méritos, inteligência e justiça.
(7)
O justo confia e consulta o Senhor e não se aparta Dele! Sabe que, grande ou
pequeno o problema, quem o faz triunfar é Cristo.
Notas
[1] Mais detalhes a respeito da estrutura social de
Israel o Antigo Testamento, consulte:A Família no Antigo Testamento:
história e sociologia. 3.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
[2] Na lição está grafado hērem, mas por razões instrumentais a
consoante hebraica heth( ח )
não foi grafada conforme à norma culta. A pronúncia equivale aos dois “rr” da
palavra “carro” [rrerem].
[5] Ver HESS, Richard. Josué: introdução e
comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 41.
[4] Cf. HARIS, R. L. (et al) Dicionário
internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida
Nova, 2001, p. 534.
[5] A segunda parte de um período gramatical, em
relação à primeira.
[6] Repetição de fonemas no início, meio ou fim de
vocábulos próximos, ou mesmo distantes (desde que simetricamente dispostos) em
uma ou mais frases. Ver Hermenêutica Fácil e Descomplicada. 8. ed. Rio de
Janeiro: CPAD, 2008.
[7] Ver Hermenêutica Fácil e Descomplicada.
8. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, p.237-42.
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